O MACACO-LOUCO DE YOSEMITE
Ele enfrentou 16 dias de escalada artificial em solitário para atingir o cume de 1.000 metros do El Captain, uma das paredes mais verticais do mundo. Repetiu o feito seis vezes, cada hora por uma via mais complicada, e em duas saltou lá de cima praticando base jump. Aos 29 anos, o escalador e base jumper Nicola Martinez brilha como o maior especialista brasileiro em ascensões difíceis no Yosemite, parque norte-americano considerado a meca mundial da escalada em big wall
Por Daniel Nunes Gonçalves
JÁ TINHAM SE PASSADO DEZ DIAS desde que o escalador Nicola Martinez, 29 anos, pendurara seus haulbags – os sacos onde são carregados equipamentos e mantimentos – na parede do Half Dome, no Parque Nacional de Yosemite, na Califórnia (EUA). Ele estava pronto para escalar a Queen of Spades, uma complicada via graduada em A4 (na escala que vai até A5), no estilo que virou sua especialidade: artificial em solitário. A única vez que um grupo fez aquela ascensão foi em 1984.
Nicola levou quase uma semana para carregar mais de 120 quilos de equipamento até a base da parede. Esperou uma tempestade passar e gastou outros três dias buscando mais comida – a que ele havia carregado para a montanha dias antes fora devorada por um urso, que o encarou a uma distância de um metro do portaledge que o abrigava.
Logo no começo da escalada, quando já estava a uns 120 metros do solo, Nicola despencou por 6 metros e ficou suspenso pelo equipamento. Ele não sentia dores depois dessa queda inicial e, incansável, retomou o ataque, arriscando diferentes equipamentos no intuito de avançar em uma das big walls mais temidas do mundo. “Saí da terceira ancoragem consciente de que o blocão que me segurava não era dos mais confiáveis”, lembra. De repente, o susto: Nicola viu a rocha desabando em sua direção, encolheu-se e logo sentiu o impacto no capacete, na mão esquerda, no joelho. Para seu alívio, embora parte da parede tenha cedido, a corda não se rompeu. Usando uma só mão – a esquerda, ensangüentada, doía muito –, ele precisou de mais de duas horas para descer dali em um delicado processo de auto-resgate. Experiente, Nicola se safou sem traumas e poucos dias depois decidiu se recuperar divertindo-se de uma forma não menos arriscada: saltando de base jump de uma ponte de 250 metros em Auburn, na Califórnia.
O perrengue acima aconteceu em junho deste ano, mas desafios como esses fazem parte da rotina de Nicola Martinez Gomes, um descendente de espanhóis de 29 anos que, mesmo pouco conhecido no Brasil, está dando o que falar nas rodinhas de escaladores internacionais. Especialmente se o assunto for o Yosemite: Nicola é um verdadeiro expert nos desafios dessa Meca outdoor.
Desde que esse paulista criado em Londrina (PR) estreou na escalada, em 1997, tem evoluído no esporte numa velocidade impressionante. Já explorou, com técnicas diferentes e por dias a fio, montanhas dos Estados Unidos, Itália, Inglaterra, Canadá. Mas foram as big wall do parque californiano que o fisgaram de fato. Faz quatro anos que Nicola passa temporadas de seis meses ali, escalando ou saltando de base jump, e acumulando uma experiência que lhe rendeu uma lista de predicados inédita entre brasileiros: é o homem com o maior número de escaladas em big wall do Yosemite, o primeiro a subir em solitário o El Captain (o maior monolito de granito do mundo) e o único que explorou essa parede mais de dez vezes e por sete vias distintas.
“ESCALO HÁ 17 ANOS E NUNCA VI alguém evoluir com essa rapidez em uma modalidade de escalada tão difícil e desgastante”, diz o escalador e fotógrafo Márcio Bruno, 33 anos, citado por Nicola como influência entre os escaladores brasileiros, assim como Eliseu Frechou e Sérgio Tartari. “Ele escala no estilo mais bonito e difícil, com uma impressionante resistência física e psicológica mesmo quando exposto a riscos prolongados”, continua, referindo-se à modalidade de escalada em que o escalador se move sustentado por peças que agüentam somente o peso do seu corpo, em um meticuloso processo de escolha do caminho e do melhor equipamento entre centenas de opções técnicas.
Em 1997, Márcio subia a Pedra do Baú, em São Bento do Sapucaí (SP), quando conheceu Nicola, então um novato dando seus primeiros passos num curso básico de escalada. Nicola gostou tanto do negócio que encasquetou: iria juntar dinheiro para virar escalador profissional, comprar bons equipamentos e realizar o sonho de conhecer Yosemite. O rapaz traçou uma estratégia e seguiu à risca. Enquanto explorava montanhas do Paraná, de São Paulo e Santa Catarina, conseguiu que fosse reconhecida a cidadania herdada por seus avós espanhóis. Aos 19 anos, com passaporte europeu, mudou-se para o Velho Continente. Desistiu de cursar faculdade e foi praticar inglês, italiano e espanhol durante dois anos. Foi barman, motorista de caminhão, cozinheiro num refúgio de montanha. Juntou dinheiro até que, em 2004, conheceu os Estados Unidos. Mochila nas costas, desembarcou na costa leste, em Boston, e optou pelo caminho mais longo. Passando pelas belas Rocky Mountains canadenses, levou mais de dois meses para atingir a Califórnia, na borda oeste, onde pretendia escalar por duas semanas. Acabou passando oito meses, se apaixonando pelo Yosemite e decidindo gastar nas escaladas todo o dinheiro que ganhasse a partir daquele momento.
“Cheguei tarde da noite na cidadezinha de Merced, que fica a uma hora do vale do Yosemite, e tive que dormir na rodoviária”, lembra Nicola, que adora contar como foi sua chegada ao lugar dos sonhos de 10 entre 10 escaladores de rocha. O relato detalhado você pode ler no bem-sacado blog Rock Monkey (http://nicolamartinez.blogspot.com) ou em algum dos textos que o “macaco da pedra” escreve em sites especializados, como o Alta Montanha. Além do amor à primeira vista pelo que ele chama de Vale Encantado, Nicola conheceu na sua manhã de estréia no acampamento 4 o escalador Dave Turner, um local que se tornaria, mais que um amigo, um padrinho. No primeiro dia, Nick ajudou Dave a carregar seu equipamento para uma escalada de 12 dias. Em troca, esse experiente casca-grossa das big walls lhe daria nas semanas seguintes o caminho das pedras mais alucinantes de Yosemite.
“Em pouco tempo vi Nick completando, ao meu lado, algumas escaladas em solitário muito difíceis”, lembra Dave, hoje escalador profissional aos 26 anos. Suas primeiras paredes – Washington Column, Leaning Tower e, logo na terceira big wall, a temida via Mescalito do El Captain – foram enfrentadas sem ajuda de ninguém. Primeiro brasileiro a realizar essa proeza, após os 11 dias que passou pendurado até chegar ao cume, Nicola ganhou com a conquista da Mescalito uma espécie de carimbo no passaporte para que pudesse aprender, com Dave Turner, os segredos da escalada de velocidade. Juntos eles subiram a parede Zodiac, do El Captain, em apenas 17 horas e com 16 cordadas, e a North America Wall, em 32 horas e com 33 cordadas. No último verão, quando viajaram juntos para a Patagônia, Dave deu sua prova de amizade ao enfrentar o ladrão que tentou roubar a mochila de Nick em Buenos Aires, na Argentina. Uma retribuição e tanto: foi Nicola quem carregou os 40 quilos de equipamento por 5 horas até o ponto da Patagônia em que Dave começaria sua última escalada de peso: em solitário no Cerro Escudo, abrindo uma via com mais de 1.300 metros, sem o uso de cordas fixas, em 34 dias de escalada non stop.
No ano seguinte, 2005, depois de passar pelo Brasil, Nicola voltou para Yosemite de forma igualmente marcante. Após dormir 16 dias na vertical, repetiu o pico do El Captain por outra via punk, a Tempest (VI 5.10 A4+), sendo apenas o quarto homem da história a subi-la em solitário. “Não conheço outro brasileiro que tenha passado 16 dias na rocha, como fez o Nick”, diz Márcio Bruno, reconhecendo a dificuldade da empreitada. “Ao escalar sozinho em artificial, o cara gasta o dobro do tempo e se cansa mais ao trabalhar o triplo do que se estivesse em uma escalada acompanhada, com a carga repartida”, explica. Nicola parece se atrair pelo que não é fácil. Gosta de paredes que quase ninguém subiu, prefere a velocidade à lentidão e a solidão às escaladas em grupo. “Gosto da intensidade das experiências, de aprender coisas novas”, define.
Com a Mescalito e a Tempest no currículo, Nicola Martinez teve a honra de ser aceito pela comunidade de escaladores de longa data do Yosemite como um autêntico dirtbag. Assim são chamados os escaladores que passam temporadas inteiras no parque, dormindo com seus sacos de dormir ao ar livre como se fossem malas sujas. Entre os colegas desse mesmo grupo, fascinado por andar à margem, estão os guias piratas, que acompanham esportistas menos experientes sem a autorização do Yosemite Mountaineering Climbing School, e os saltadores de base jump clandestinos (o esporte é proibido ali), subgrupo ao qual Nicola também se integrou. “Nosso lance é escalar, sem essa burocracia de ter que pagar taxa, fazer teste disso e daquilo”, diz Nicola, que tem escalado novas vias ano a ano: Nawall, Zenniata Mondata, Sea of Dreams, Triple Direct, e por aí vai. A comunidade que o adotou já chegou a lhe abrigar com casa e comida numa situação em que teve roubados os últimos 600 dólares do bolso.
Estilo para ser um dirtbag de Yosemite não falta a Nicola. Como se não bastasse a técnica e o arrojo, ele é um gente fina bem-humorado que dá a impressão de não estar nem aí com qualquer coisa que não sejam os esportes que ama. No dia em que encontrou o repórter de Go Outside para uma entrevista em pleno aeroporto de Cumbica (SP), em sua primeira passagem pelo Brasil depois de três anos na estrada, refazia duas malas que pesavam 60 quilos. Para evitar pagar excesso de bagagem, Nick não se importou de espalhar cuecas e cordas pelo chão diante do check-in da British Airways. Seu corpo magrelo, 58 quilos e 1m78, vestia blusa e calça surradas que pareciam ter dois números a mais. A barba estava por fazer e o cabelo era moicano. “Não ligo pra essa coisa de estética”, diz. Nick já usou dredlocks, corta os próprios cabelos que já pintou de amarelo, e chegou até a barbear apenas a metade direita do rosto (confira a foto no blog). Na verdade, Nicola é um desencanado espírito livre, avesso a máscaras sociais. Não se importa de ficar sem tomar banho por 16 dias e ostenta um carisma que já lhe rendeu experiências como apresentador da série De Carona Com O Nick, no programa Gravidade Zero, exibido na TV e na internet.
“O Nick é capaz de te dar o último gole de água ou o único dólar que resta na carteira”, diz o escalador norte-americano Aaron Jones, que acompanhou, à distância e também pendurado no paredão, a escalada solitária de Nick na perigosa Porcelain Wall, em 2006. O nome vem da rocha, tão frágil que faz lembrar porcelana. O brasileiro quebrou um hiato de onze anos desde a primeira conquista da via mais difícil dessa parede, batizada de When Hell Was In Session (VI 5.10 A5), percorrendo seus 800 metros ao longo de 11 dias. O esforço físico de içar 150 quilos de equipamento, mais comida, fogareiro e o tubo de PVC onde alivia e carrega suas necessidades fisiológicas o fez descer seis quilos mais magro. “Enfrentamos tempestades pendurados na rocha e dormimos em cavernas em um dos invernos mais chuvosos da história do Yosemite”, conta Aaron. A dupla repetiria a dobradinha trabalhando juntos na produção do documentário alemão Am Limit, dos irmãos Alex e Thomas Huber – um bico que rendeu a melhor remuneração de Nicola nos últimos anos: 5 mil dólares por 23 dias carregando equipamento de filmagem morro acima.
TER SE TORNADO UM ÁS DA ESCALADA EM BIG WALL não levou Nicola a almejar grandes altitudes ou sonhar com montanhas de neve do naipe do Aconcágua ou do Everest – ele prefere a experiência radical do big wall. Seu recorde de altitude foram os 4.500 metros na Sierra Nevada dos Estados Unidos. Mas as longas esperas pelo bom tempo e a vontade de voltar dos cumes de forma mais rápida e emocionante o levou a descobrir, em 2006, o base jump. Nicola se destaca hoje por ser um caso raro de escalador com prazer também por se atirar lá do alto. Primeiro ele arrumou emprego numa escola de pára-quedismo para que pudesse aprender a saltar sem torrar uma nota. Passou um ano dobrando pára-quedas, ganhando uma merreca de 5 a 10 dólares por cada unidade dobrada e chegando a embolsar 350 dólares por dia. “Eu estava ao lado dele no seu primeiro salto de pára-quedas, e lembro que chegamos a ficar preocupados”, lembre a escaladora do Alasca Paige Davis, 28. Tenso, Nick rodou tão forte que se afastou dos dois instrutores e só conseguiu abrir o pára-quedas a 4 mil pés, quando o correto é dispará-lo aos 5 mil. Aterrissou longe e assustado, mas fez questão de repetir o salto sozinho. “Como se não bastasse ser um grande escalador, ele se deu muito bem também como sky-diver”, reconheceria Paige mais tarde. E também como base jumper: apenas seis meses depois de se acostumar com os 65 saltos de aviões, Nicola saltou pela primeira vez de uma ponte em Idaho, EUA.
Foi na noite de 31 de dezembro de 2006. Nicola e seus amigos Chris McNamara e Miles Daisher comemoraram o ano novo saltando, à meia-noite, da ponte Perrine, com 120 metros – um deles com uma garrafa de champanhe à mão. Instantes depois de chegarem ao solo e se abraçarem, foram focados pelos holofotes da polícia no alto da ponte. “Achavam que éramos suicidas”, lembra Nicola. Gritamos ‘we are base jumpers, happy new year!’ (somos base jumpers, feliz ano novo!) e saímos correndo dali para não sermos presos”. O salto foi uma estréia e tanto para quem nunca tinha experimentado aquele tipo de queda livre. Hoje o caderninho de Nick já lista cerca de oitenta saltos como esse, de plataformas que variam de perigosas torres de energia elétrica aos dois saltos dos 1.000 metros do topo do El Captain, na companhia de ninguém menos que seu ídolo Dean Potter – escalador que o inspirou também aos primeiros exercícios de caminhada sobre cordas, o slack line. Só do monte Brento italiano, com 800 metros de altura, Nicola já chegou a pular quatro vezes no mesmo dia. Nos pára-quedas, a quantidade de saltos já ultrapassa os 125.
Os saltos de base jump – segunda paixão de Nicola depois das escaladas em big wall – acontecem em Yosemite sempre na última luz do dia, quando a escuridão eminente ajuda os dirt bags a se esconderem dos guarda-parques. “Quando chegamos lá embaixo, tem sempre alguém de carro esperando para fechar o pára-quedas e podermos fugir rapidinho”, confessa Nicola. Caso sejam pegos, os base jumpers podem passar a noite na cadeia, ter seu equipamento apreendido e pagar uma multa de 2.500 dólares. Como na escalada, Nicola também prefere o estilo de salto mais difícil, com uso da wingsuit, roupa que liga os braços ao tronco formando duas espécies de asas. Com o traje que o faz parecer um morcego vermelho, seus saltos de 15 segundos tornam-se vôos com o triplo do tempo.
Embora o seu estilo preferido de escalada seja altamente arriscado, Nicola não teme a morte. Ele já viu a cara feia do desapego súbito várias vezes, como quando a mãe morreu de câncer aos 47 anos, em 1997, pouco antes dele descobrir a escalada. Em julho de 2006, ficou chocado com o acidente de carro pertinho de Yosemite que matou, aos 32 anos, a curitibana Roberta Nunes, escaladora com quem tinha subido o El Captain e por quem tinha admiração e carinho profundos. E, no início deste ano, teve o maior dos golpes ao receber a notícia da avalanche que tirou a vida da ex-namorada canadense Susanna Lantz, uma escaladora e esquiadora de 28 anos que tinha pedalado por 11 meses desde o Alasca até a terra do fogo. “De modo algum quero terminar mais cedo minha passagem por esse plano”, diz, consciente de que o próprio Yosemite, ninho que adotou para si, tem um histórico de tragédias. “Mas gosto de estar intensamente conectado com a natureza, e esse prazer implica no risco”, resume.
Roberta estava com Nicola quando ele cometeu o que chama de maior vacilo de sua vida, em 2004. Duas semanas depois de um casal de escaladores japoneses morrer na via Nose do El Captain, os brasileiros, que escalavam a via Triple Direct com mais dois amigos, passaram pelo lugar da tragédia nas 10 cordadas finais, quando as duas vias se juntam. Tinham percorrido dois terços da parede e só faltavam 10 cordadas para o cume quando Roberta deixou cair uma peça. Nicola quis resgatá-la rapelando numa corda de sete metros, quando percebeu que não havia um nó na ponta. “Foi por pouco”, lembra ele. “Parei a meio metro de vazar no fim da corda e de despencar de um abismo de 800 metros”, recorda. Nicola atribui o erro ao traiçoeiro excesso de confiança de quem já tinha escalado nove paredes naquela temporada. “Depois daquele susto eu checo cada procedimento pelo menos três vezes”, conta. Se vai escalar por 16 dias, leva água para 20 (bebendo 4 litros diários). E, para dobrar um pára-quedas de base jump de forma segura, não se importa de gastar 40 minutos.
“Ele não tem medo de se comprometer a fazer coisas extremas”, analisa o belga Nicolas Favresse, que escalou no primeiro semestre com Nick o Marmolada, na cadeia italiana de Dolomiti di Brenta. “Não acreditei em como ele reagiu calmamente, às 11 da noite e depois de 16 horas de escalada em um frio de matar, quando eu disse que a única forma de voltarmos, caso não chegássemos ao topo, seria descendo por uma greta”, conta Favresse. No tipo de escalada em que se especializou, Nick sabe que nunca pode desistir do topo. Os abandonos são raros e trabalhosos, como a tentativa no Half Dome que abriu esse texto. Ali Nicola deixou cordas e equipamentos, com a esperança de voltar tão logo o tempo permita. “Ele não estressa, parece estar sempre se divertindo”, surpreende-se Favresse. Talvez esteja aí o segredo por trás das conquistas inéditas de Nicola Martinez: realizar o que lhe dá na telha pelo simples prazer de explorar intensamente as maravilhas da natureza. Como as alturas do Yosemite que escolheu como casa.